Público - 4
Nov 06
Perguntas Inocentes
José Manuel Fernandes
O programa de troca de seringas
nas prisões sugere muitas perguntas para que não há
boas respostas. Porque quem o promove parece não
condenar o consumo de drogas, antes o vê com
naturalidade
Se um dos deveres dos Estados é
garantir a segurança dos cidadãos e, para tal, criar
e dirigir um sistema de prisões, por que motivo no
interior desse sistema de prisões esse mesmo Estado
é incapaz de fazer aplicar a lei? Isto é: se fora
das prisões é proibido o tráfico de droga, como se
explica que este exista no interior de um espaço
controlado como se supõe ser uma prisão?
Admitamos contudo que o Estado
não consegue fazer cumprir a lei dentro desse espaço
fechado e vigiado que é uma prisão e, por isso, não
logra impedir que no seu interior se trafique droga.
Se assim é, por que motivo não aplica o Estado às
prisões a filosofia que diz ter estabelecido para
elas, isto é, a de serem lugares onde, para além de
cumprirem pena aqueles que cometeram crimes, se
espera que estes sejam recuperados e possam
regressar ao convívio de todos sem constituírem de
novo um perigo? Por outras palavras: se existem, e
existem, muitos toxicodependentes nas prisões, por
que motivo não trata o Estado de os curar, ou pelo
menos não tenta desintoxicá-los, assim eliminando a
dependência que os levou a cometer os crimes que os
atiraram para as prisões?
É certo que no programa do
Governo de coloca como prioridade da política de
saúde a prevenção da doença e da toxicodependência,
mas mesmo assim admitamos que o Estado não possui,
neste momento, dinheiro para levar a cabo esses
tratamentos. Mas se assim é, não deveria ao menos
tratar de evitar que, dentro das prisões, os que
para lá entram sem sintomas de dependência não saiam
de lá viciados? Não devia protegê-los não só dos
traficantes como dos consumidores, se possível
separando-os? Não devia ser uma prioridade da
política prisional multiplicar as Unidades Livres de
Drogas em vez de ter poucas e subocupadas?
Bem, se a esta pergunta se
continuar a responder que faltam meios e espaços,
que as prisões são antigas e superlotadas, então
cabe perguntar se será mesmo avisado distribuir
seringas nas prisões. Aí a resposta é conhecida: se
não podemos mudar a realidade, temos de viver com
ela, e se a droga circula livremente dentro das
prisões, ao menos que os presos não se contaminem
uns aos outros utilizando seringas já usadas. Ou
seja, dão-se seringas em nome da saúde dos presos.
Contudo, sobram outras perplexidades.
A primeira perplexidade é ter-se
considerado que a distribuição se seringas é uma
prioridade quando o Relatório do Grupo de Trabalho
Justiça/Saúde detectou que cerca de 40 por cento dos
reclusos são consumidores de drogas mas apenas
encontrou menos de um por cento a fazê-lo por via
endovenosa, isto é, utilizando seringas. Mais,
quando este recomenda muitas outras medidas antes
dessa.
A segunda perplexidade é verificar-se que tudo
indica, a crer nas declarações do director-geral dos
Serviços Prisionais, que o Estado entrega seringas
mas não fornece droga (o que estimula o tráfico) nem
cria sala de chuto (o que aumenta o risco para os
outros reclusos e torna difícil de controlar as
condições do consumo).
A terceira perplexidade é
verificar-se que uma das cadeias em que vão poder
ser trocadas seringas não apresenta, há anos, sinais
de consumo através de injecção. Nesse caso, para quê
as seringas?
Suspeito que só há uma explicação
para todas estas perguntas: quem promove estes
programas não condena moralmente o consumo de drogas
apesar de estas destruírem física e psicologicamente
milhões de seres humanos. Por isso não procura
realmente combater o consumo, antes viver com ele.
Como se fosse uma fatalidade tolerável ou mesmo
aconselhável.