Público - 15
Nov 06
A geração rasca e a classe média do conhecimento
Paulo C. Rangel
As salas de
aula converteram-se em sociedades assimétricas, em
que um décimo dos alunos é excepcionalmente bom e
três quartos são fartamente medíocres. Desapareceu
dos
anfiteatros e dos laboratórios
a "classe média do conhecimento"
1. Faz tempo
que não ouvia falar na "geração rasca" - e devo
confessar que não sentia nem saudades nem falta
nem, ao menos, nostalgia do conceito e da bugiganga
analítica que, por largo curso, lhe andou
associada. Dias atrás, porém (mais precisamente a
4 de Novembro), Rui Tavares encarregou-se de o
recuperar - e, valha a verdade, vituperar - num
artigo, aqui no PÚBLICO, a que chamou "A grelha
queimada".
Se bem ou mal me lembro, o conceito foi desenhado
para retratar o movimento de contestação à
ministra da Educação Manuela Ferreira Leite. E, em
particular, aludia à deriva mais ou menos obscena ou
grotesca que então infestou protestos e
manifestações de alunos contra a introdução de
propinas, de exames e de outros - ainda hoje tão
necessários quão indispensáveis - instrumentos de
"responsabilização" do corpo discente.
A palavra então cunhada - a palavra "rasca" - era
forte, porventura, forte de mais, e, rapidamente,
extravasou as fronteiras da sua estrita ocasião de
nascimento. Inicialmente serviu para evocar a
soltura ou libertinagem de certos gestos de
protesto e a recusa obstinada de um princípio de
responsabilidade ou de "auto-responsabilidade"
de adolescentes e jovens adultos. Mas, num ápice,
revelou a potência atractiva dos "conceitos-miscelânea",
com a sua vocação total e "totalizante", e a
"finura" sociológica das "profecias que se cumprem
a si mesmas", com o seu efeito reprodutor e
estigmatizante.
A geração rasca já não era apenas a geração que se
manifestava por se manifestar e para se manifestar.
Já não era a negação corporativa de mais exigência e
mais responsabilidade dos alunos no seu processo de
formação. Era agora o retrato de uma estirpe da
incivilidade, de uma linhagem apologista do "facilitismo"
e da ignorância, de uma prole do analfabetismo
funcional e da indigência cultural. A geração rasca
não era apenas e tão-só o lamentável produto de um
sistema - o sistema educativo. Ela era outrossim
uma das responsáveis do estado do sistema, uma das
"suas" culpadas. A geração rasca deixara de ser o
"cordeiro pascal" - a vítima inocente - para passar
a ser o "bode expiatório" - a depositária da culpa.
2. Na análise do processo e das relações sociais,
todas as simplificações são perigosas e esta - a
da geração rasca - também era. Mas, na sua profunda
incorrecção política - quiçá por causa dela -, tinha
méritos e pergaminhos. Primeiro, o de pôr em causa
a legitimidade de certos comportamentos dos
manifestantes, que até aí eram validados por
simples empatia acrítica com a bondade selvagem da
irreverência juvenil. Segundo, por apontar - contra
a corrente - a evidente responsabilidade dos
alunos (e, já agora, dos seus pais) no processo de
aprendizagem.
Se dela se retirou - como pretende ou sugere Rui
Tavares - a ideia de que todos os alunos da época,
sem matizes nem diferenciações, estavam condenados
ao "grau zero" do saber e a um atávico insucesso,
trata-se evidentemente de inferência ilegítima.
Como, de resto, seria ilegítimo considerar que se
organizara uma geração da barbárie, sem modos nem
maneiras, sem siso nem bom senso. A psicologia das
massas explica largamente a excitação dos
indivíduos, a exaltação das práticas grupais e os
mecanismos da sua rebelião. Não são necessárias
explicações adicionais.
3. Mas se não é adequado nem razoável o baptismo de
uma era e dos seus protagonistas com o epíteto de
"geração rasca", também não convence o exercício de
optimismo antropológico a que se devota Rui Tavares.
Na primeira parte do seu artigo - que é a única que
para aqui releva -, procura vingar a suposta
humilhação da "geração da rasca" pela exibição do
número de jovens cientistas portugueses que
publicaram artigos na Science e na Nature, no ano
que passou. Num só ano, houve mais artigos
científicos ali assinados por portugueses do que em
todo o historial daquelas revistas. Eis a prova de
que a educação não é tão sinistra quanto se pinta e
de que os "rascas" não eram afinal tão "rascas"
quanto se lobrigava.
O problema actual da educação portuguesa não é -
pelo que me diz a experiência e pelo que leio nos
números - a falta de bons alunos, de alunos
excelentes. Diria até, com base puramente empírica,
que hoje os melhores alunos são mais em número e
ainda melhores em qualidade do que há 20 anos atrás.
O problema é que, apesar dessa subida dos níveis de
excelência, a média é hoje pior. As salas de aula
converteram-se em sociedades assimétricas, em que
um décimo dos alunos é excepcionalmente bom e três
quartos são fartamente medíocres. Desapareceu dos
anfiteatros e dos laboratórios a "classe média do
conhecimento", para usar um conceito que tomo de
empréstimo a José Pedro Aguiar-Branco. O fosso
entre os bons alunos e os restantes é de tal ordem
que os professores já não conseguem empregar uma
linguagem que sirva indistintamente ambas as
classes. Quem todas as semanas os encara, até já
lhes adivinha o destino. Os bons - os tais muito
bons - não ficarão em Portugal e já só pensam -
legitimamente e bem - nos anos que passarão fora. Os
outros, do altar da sua sofrível mediania, aguardam
o que o mercado de trabalho e o trabalho do mercado
lhes reservar.
E - mais triste e mais grave - o fosso de saber
reproduz, cada vez mais fielmente, as diferenças
sociais e económicas. O facilitismo e a promessa do
sucesso escolar universal produziram uma
aristocracia do saber - uma "sofocracia" - que
redunda praticamente no espelho das desigualdades
sociais. Ao contrário do que se imagina, os
verdadeiros indutores do conhecimento são agora
as famílias, com os seus recursos culturais e
financeiros, e já não as escolas.
A exibição gratuita e desgarrada da
internacionalização dos cientistas portugueses é
motivo de orgulho, mas diz menos sobre o nosso
sistema de ensino do que, à partida, se poderia
suspeitar. O sistema não será talvez o da dita
"geração rasca", mas, a cada dia que passa, fica
mais distante do grande desígnio democrático de
formar uma classe média do conhecimento. Jurista e
deputado (PSD)