Público - 20
Nov 06
Mas queremos mesmo valores?
Mário Pinto
1.O recente e extraordinário congresso da Fundação
Gulbenkian, sobre o tema Que Valores para Este
Tempo?, abriu com uma conferência inaugural de
Eduardo Lourenço, que escolheu dissertar À Sombra de
Nietzsche - foi este o título que deu ao seu
discurso. Título que, em si mesmo, faz muito
sentido, porque se há coisa evidente é que Nietzsche
ensombra, e não ilumina. Não porque não tenha sido
genial, contraditório, violento e o mais que os seus
admiradores frequentemente lhe creditam; mas porque,
afinal, fazendo filosofia (amor da sabedoria),
entronizou o que porventura pode dizer-se a
irracionalização da razão: a "vontade de poder", o
"super-homem", aquele pathos que veio a dar o
nazismo - com efeito, muitos o consideram o profeta
da loucura nazi.
2. Nietzsche atacou a virtude cristã como uma moral
de escravos - moral que não apenas criticava, mas
sobretudo detestava, porque nela via exactamente a
sua contradição. A boutade vulgar que proferiu,
"Deus morreu" (que tão banal se tornou, mas Eduardo
Lourenço não foi capaz de omitir no seu discurso),
foi uma contraface da glorificação do "super-homem".
Hoje, quem de facto já morreu foi Nietzsche; e Deus
continua vivo - é este o testemunho de uma imensa
multidão de crentes em todo o mundo, que nem por ser
crentes deixam de ser inteligentes, racionais,
cientistas e filósofos, como os melhores.
3. Na sua exposição, Eduardo Lourenço referiu
Nietzsche, nominal ou pronominalmente, por 37 vezes,
se não me enganei na conta; e a seguir Schopenhauer
- que foi o mestre de Nietzsche - por cinco vezes.
Depois, Voltaire e Kant, Hegel e Feuerbach. A Kant
ainda alguém poderá recorrer, se quiser fundamentar
"valores para este tempo" num imperativo categórico;
mas aos outros nomeados, incluindo o Hegel das
descendências totalitárias, de direita e de
esquerda, é pelo menos muito duvidoso. Por isso,
Eduardo Lourenço, que no tom do seu discurso nos
insinuou um Nietzsche admirável, quase amável,
concluiu muito logicamente: "E essa é a crise. É que
nós não temos critério para distinguir o que é
verdadeiramente valor do que não é. (...) somos nós
não os pais dos valores, mas os criadores dos
valores ou, por não os sermos capazes de os criar,
as suas vítimas".
4."Nós"... salvo seja. Alguns de nós não se incluem
nesse "nós". Há outros profetas, outras luzes,
outras filosofias. Mas se é inquestionável que a
procura de "valores para este tempo" supõe
filosofar, poderemos então recusar o programa
milenar da Filosofia, que são perguntas e sempre de
novo respostas, designadamente, para o nosso
problema, o programa da Metafísica e da Ética? Não
podemos.
Porém, hoje, a Metafísica e a Ética estão canceladas
pela moda: a moda é pós-metafísica e relativista.
Não por causa da real caducidade das questões
metafísicas e éticas; mas sim pela autolimitação da
razão pós-moderna, que se bloqueia por enredos
epistemológicos, assim como um cego que decidisse
não pensar nem acreditar a não ser no que vê.
5. Para que o meu paciente leitor (que não seja
filósofo encartado, como eu não sou, embora todos
sejamos filósofos) possa julgar por si mesmo, ouso
aqui sugerir que consulte o programa desses ramos da
Filosofia, com as suas perguntas cruciais, não em
latim e de acordo com a escolástica, mas em inglês e
de acordo com a moderníssima Wikipédia, na Internet:
http://en.wikipedia.org/wiki/Phylosophy#Branches_of_philosophy.
Por exemplo.
6. Se procuramos "valores para este tempo", são
desde logo indispensáveis os valores do direito e da
cidadania. A história da Filosofia do Direito
recolhe muito bem as contribuições dos filósofos
para fundamentar, ou criticar, não apenas a moral,
mas especificamente o Direito - duas ordens
normativas essenciais: para a vida civil e para a
cidadania. Para sobre isto recordar o que aprendi e
aceitei, fui reler, e vou citar, de um precioso
manual de Hans Welzel, Direito Natural e Justiça
Material (há uma tradução do alemão para
castelhano), cujo estudo devo à mediação do meu
saudoso professor, Afonso Queiró.
7.Segundo Schopenhauer, o mestre de Nietzsche, a
essência do mundo é um impulso cego, um instinto
imotivado, a que chama "vontade". O intelecto é
apenas um produto da vontade vital - em si
inconsciente - simplesmente um instrumento e uma
arma na luta pela existência. Processo que tem
lugar, em igual medida, no homem como no animal.
Perante a questão filosófica de saber se deve dar-se
a primazia à razão ou à vontade, questão bem antiga,
nunca a razão tinha sido convertida em mera função
de uma vontade interpretada como força natural cega
e instintiva; mas foi isto o que ocorreu no
pensamento de Schopenhauer: o intelecto é uma função
do cérebro, alimentada pelo organismo como um
parasita. Porém, com uma possibilidade de salvação:
Schopenhauer defendeu que, na subida do animal ao
homem, o intelecto se desprende cada vez mais da
vontade, até que finalmente, em casos excepcionais,
se torna capaz de contemplar o mundo
desinteressadamente; isto é, de modo completamente
objectivo. E é assim que o homem consegue figurar,
poetizar, pensar, ascender ao conhecimento das
ideias. Nesta objectividade desinteressada do
pensamento, Schopenhauer ainda via o caminho para a
libertação do homem da vontade primária irracional.
8. Pois bem; foi esse último recurso salvador que
Nietzsche negou, porque o viu só para criar uma
"falsa hierarquia". Nietzsche quis reconquistar para
o sujeito do conhecimento o "direito ao grande
afecto"; e viu na objectividade apenas o "sinal de
pobreza de vontade e de energia". Assim, Nietzsche
deu o último passo na redução da razão às supostas
forças irracionais que se encontram na sua base.
9.Talvez o "nosso" tempo seja também inclinado a
simpatizar com o "direito ao grande afecto". Mas não
é por aí que descobriremos caminho para valores, que
por definição se não reduzem aos afectos e antes os
avaliam. Por isso, não serão de admirar as palavras
conclusivas do discurso de Eduardo Lourenço, acima
transcritas, onde se não comunica uma esperançosa
confiança, mas em vez disso se lê um mau presságio.
Adenda. À saída do seminário da Gulbenkian, Eduardo
Lourenço, nosso maître à penser, foi entrevistado e,
obviamente, interrogado sobre o que pensava acerca
da questão do aborto voluntário. Então logo ali
declarou (e digo por palavras minhas porque não
retive as suas exactas palavras) que estamos perante
uma situação de sofrimento da mulher; e que temos
por isso de procurar soluções pragmáticas e não
soluções com base em valores. A jornalista concluiu
perfeitamente que ele era a favor do "sim" no
referendo; e que era contra a decisão com base na
moral.
Mas então, se é assim, para quê conferências
interrogando "valores para este tempo"? professor
universitário