Público - 22
Nov 06
As palmas
Joaquim Fidalgo Crer para Ver
Eu nunca tinha visto tal coisa. Melhor: já tinha
visto, sim, mas em situações muito particulares, no
funeral de alguma figura pública, onde por vezes até
há pequenos discursos ou homenagens em palavras e as
pessoas batem palmas. Mas num funeral, digamos,
comum, no funeral de uma pessoa que não é das que
saem nos jornais, nunca tinha visto bater-se palmas.
Vi há dias e gostei: foi um gesto lindo de
homenagem, um bater suave de palmas que se
acrescentou ao silêncio da despedida de uma pessoa
querida. Não é, de facto, uma situação habitual, até
porque as palmas (como a música) costumam ser mais
ligadas a situações de alegria e de festa do que a
momentos de dor e de mágoa. Talvez não devesse ser
assim...
Era, como disse, o funeral de uma pessoa comum,
daquelas a que costuma impropriamente chamar-se
"cidadãos anónimos", pois nenhum cidadão é anónimo,
mesmo que o seu nome não saia nos jornais. No caso,
era o funeral do Sr. João. Eu gostava muito dele,
como gosto muito da família dele, embora já há meses
(anos?...) não o visse. Soube que ele tinha morrido
quase em cima da hora do funeral, mas não quis
deixar de ir, por ele e pela família. Como eu,
muitos amigos. Lá fomos em silêncio até ao
cemitério, em silêncio ouvimos as despedidas do
padre, em silêncio depusemos flores, em silêncio
acompanhámos o som chão da terra que o cobria. E foi
nesse momento que alguém começou suavemente a bater
palmas. E logo outro, e outro, e outro. E,
suavemente, todos batemos palmas ao Sr. João,
prestando-lhe homenagem pela vida cheia que vivera e
agradecendo-lhe o que nos deixara, a todos e cada
um. Foi um gesto lindo e, pareceu-me, muito
apropriado. "Por que é que se bateram palmas? É
coisa de alguma religião ou assim?...", perguntou-me
alguém ao lado, também com surpresa - porque, de
facto, não é costume. Eu disse que achava que não
era coisa de religião nenhuma, era só alguém que em
boa hora se tinha lembrado de dizer um pouco mais
alto o que, se calhar, nós todos queríamos dizer, e
começara a bater palmas. E nós também, agradecendo
do coração a sorte de termos convivido com "um tipo
muito porreiro", como foi o "ti João" (tens toda a
razão, meu caro Luís, tens toda a razão!)
Eu, por mim, agradeci-lhe sobretudo o sorriso que
guardo na memória - e que não morrerá nunca. Sim,
porque ele dava-me um sorriso sempre que o
encontrava. Sempre. Um sorriso largo, bonito,
afável, cheio de brilho nos olhos. O brilho com que
me falava, entre orgulhoso e embevecido, dos seus
filhos, e com que me perguntava, solícito, pelos
meus. Encontrava-o poucas vezes, ora na rua, ora nas
compras, assim, de passagem, e ele dava-me sempre um
sorriso. Sempre, sempre, sempre. Estivesse fresco ou
cansado, triste ou alegre, doente ou com saúde, mais
ou menos animado, que decerto algumas vezes estaria
uma coisa e outras vezes outra, não interessava:
dava-me um sorriso, sempre, um largo e bonito
sorriso.
Haverá coisa mais simples do que esta? E, no
entanto, haverá coisa mais extraordinária?...
Palmas, pois. Jornalista