Jornal de Negócios online -
24
Nov 06
Notas sobre a educação
Alexandre Brandão da Veiga
Recentemente, a Suíça
alemã decidiu acabar com a possibilidade de se usar
o dialecto local nas aulas e de dar o mesmo valor ao
dialecto que se dá ao alemão, chamemos-lhe assim,
correcto.
Facto significativo num país que
mais que outro forneceu pedagogos à Europa, ou que
mais atraiu gente dedicada à educação. Rousseau e
Pestalozzi, mas igualmente Piaget e indirectamente
Pfeffel todos eles deram à Suíça um peso na
pedagogia que muitos outros poucos países poderão
pretender emular.
Sempre que se fala de educação,
todas as pessoas concordam que deve ser uma
prioridade. Mas quando há campanhas eleitorais,
quando se pede a um primeiro-ministro para falar da
coisa, apenas se percebe o imenso vazio de ideias na
matéria. Por isso parece-me importante tentar ver
para o que serve e para o que não serve a educação.
A educação não serve nem nunca
serviu para criar génios. Não serve nem nunca serviu
para criar santos. A carência de educação pode
fazê-los mirrar, pode estimulá-los, mas não é
elevando o nível de educação que se obtêm
automaticamente pessoas com força criativa.
A educação em geral aumenta a
capacidade produtiva, mas aumenta sempre as
expectativas. A experiência tem demonstrado que as
expectativas tendem a crescer mais depressa que as
capacidades produtivas. O resultado é o de uma
educação disseminada criar em geral frustrações. Ou
por aboborar especialidades que rapidamente se
tornam excedentárias para as necessidades dos países
(juristas, literatos semi-formados, etc.), ou por
dar preparação de base insuficiente, ou por não
estimular o realismo. Quem tem mais educação tende a
ter sempre mais expectativas, mas raras educações
preparam para realizar essas expectativas.
A educação primária é a que mais
resultados tem por si mesma. De seguida existe uma
lei de custos marginais crescentes com utilidades
marginais decrescentes. Cada nova dose de educação é
cada vez mais difícil e produz uma margem cada vez
menor de resultados. A experiência micro desta lei
encontra-se na vida do dia a dia. Aprender as bases
do cálculo infinitesimal é tarefa simples. E são
elas que se usam em todo o cálculo. Mas desenvolver
ramos especiais do cálculo implica o esforço de uma
vida. Aprender os princípios da electricidade é
coisa simples. Mas perceber em profundidade o que
significam é tarefa de uma vida. E assim por diante.
No plano macro vale a mesma lei.
Mas para que serve a educação?
Entremos sem dó no campo dos pedagogos, nem que seja
para dele sair rapidamente. Para que serve? Serve
exactamente para que as pessoas sejam diferentes do
que são. Exactamente o contrário do que certa versão
vulgata da pedagogia de matriz Rousseana nos diz.
Senão vejamos. As crianças, antes de aprenderem, são
analfabetas, sem ofensa para elas. Se uma pessoa já
sabe latim, o que vai fazer para a escola? Se se
criam instituições para aprender é porque as pessoas
não sabem. Se as pessoas não sabem comer à mesa,
para que precisam elas de aprender? Depois de
aprender já sabem e fazem coisas que não eram
capazes de fazer. A educação não tem como finalidade
fazer com que as pessoas sejam o que são, salvo numa
perspectiva dialéctica, que por sinal escapa a
grande parte dos educadores. A educação é sempre uma
violência que se pratica em relação aos educandos.
Independentemente da sua vontade de aprender
entende-se que têm de aprender. Quando um professor
diz que aprende mais do que ensina dá-me vontade de
obrigá-lo a pagar para dar aulas. A antropologia que
subjaz a uma visão não directiva da educação é no
fim de contas profundamente pessimista: acha que a
educação da pessoa visa torná-la nela mesma. Ou
seja, as pessoas são apenas equívocos antes de
educadas, são algo diverso do que realmente são. O
vício é patente. É verdade que uma educação nunca
deve destruir uma personalidade. Mas se não a mudar
de nada serve.
Até aqui vimos as invariantes,
Vejamos agora o que se pode fazer com este pano de
fundo. Que margem de manobra nos dão estas
inevitabilidades?
Em primeiro lugar, para que não
serve a educação? Não serve para dar felicidade.
Assim como não pode ter a crueldade de a destruir, e
deve evitar fazê-lo, a educação não pode ter essa
presunção. Se nem a dada individualmente pelos pais,
por maioria de razão a dada por um sistema formal.
Em segundo lugar, para criar génios. É-lhe
impossível fazê-lo, e nem os mais optimistas
acreditam nisso. Em terceiro lugar para criar
profissionais. A educação enquanto tal nunca gerou
profissionais nem é essa a sua função. Em quarto
lugar, o de criar santos. Nem para as beatitudes
celestes, nem as ecológicas, dos direitos humanos ou
outros.
Para que serve então uma
educação? Para que deve servir? Para dar quadros: de
expressão, de compreensão, de referências. Para
tornar o pensamento e a comunicação mais eficazes e
certeiros. Para isso tem de integrar os aspectos
afectivos, sem dúvida. Mas sempre considerando que o
que se dá são quadros. Para integrar criticamente.
Integrar porque as crianças têm a sorte, mas
igualmente a corveia, de entrar num mundo que já tem
uma imensa riqueza para a qual em nada colaboraram.
Precisam de ser integradas nele, sob pena de em
adultos de se tornarem em políticos que dizem que a
Turquia é um país europeu sem morrer de vergonha, ou
seja um dos graus mais baixos a que vejo ser
possível cair a humanidade. Mas integrar
criticamente, ou seja, sem fundir. Bela tradição
europeia a nossa (muito anterior ao iluminismo, ao
contrário das histórias infantis que andam na
cabeças de uma classe política analfabeta) a da
profunda adesão que pressupõe ao mesmo tempo fazer
parte e ser autónomo.
Isso significa pensar não apenas
nas metodologias mas igualmente nos conteúdos. Na
metodologia apenas vejo como adequado um regime de
afectos baseado na autoridade. Se um professor não a
tiver nada fará de jeito com os alunos. O âmbito
disciplinar será sempre o centro da aula em vez de
os conteúdos. No plano da metodologia igualmente,
retirando as mitologias sobre a pedagogia e dando
mais formação cientifica que pedagógica, sob pena de
os professores conhecerem muitos métodos para dar
uma matéria de que afinal sabem muito pouco. Quanto
aos conteúdos, a verdade é que as pessoas mais
completas e elásticas que conheço têm uma dupla
formação: clássica e científica. As bases
curriculares continuam a ser para mim as línguas
(materna, as vivas e as mortas), a História, a
Filosofia, a Música, a Educação Visual, e nas
ciências a Matemática, a Física, a Química e a
Biologia. Aprofundar e não dispersar deveria ser o
lema. Conheço pessoas que com boas bases de alemão
aprenderam relações públicas, mas não a inversa,
pessoas que sabendo História fizeram ciência
política mas não a inversa, que sabendo matemática
foram bons engenheiros, mas não a inversa.
Mas o espectáculo que vemos nas
escolas é exactamente o inverso. Cadeiras menores
foram por razões ideológicas empoladas (ginástica,
trabalhos manuais, por sinal idolatrando os melhores
ao contrário das outras cadeiras - não se trata de
frustração, tive sempre óptimas notas nestas
matérias, eram fáceis demais para não as ter), ou
então imposto um conjunto infernal de matérias
irrelevantes para formação geral (jornalismo,
relações públicas, técnicas de tradução, e mais umas
centenas de inépcias). Qual o resultado deste tipo
de currículos? Um gasto imenso para começar. Para o
Estado, para os alunos, para os professores. Saem
dos liceus grandes especialistas em jornalismo ou
relações públicas? De todo. Ganho nulo. E saem
alunos sem saber nenhuma língua, nem a própria, nem
a dos outros, nem as mortas, analfabetos musicais
que não sabem ler uma pauta (incluo-me nessa triste
classe, para grande vergonha minha), analfabetos
visuais, que não sabem ver um quadro, nem uma
igreja, analfabetos matemáticos, que mal sabem o que
é um teorema, analfabetos da física que ignoram o
que seja a inércia (salvo por experiência
intelectual própria). Destruição significativa de
valor. Gastos elevados, ganhos nulos e destruição de
valor, eis um saldo que me parece – temeridade minha
– francamente negativo.
Não estou a idolatrar passado
nenhum. Antigamente saíam pessoas com mais bons
modos, melhor expressão de português e melhores
bases, mas em suma com lugares comuns e pouco
aprofundamento. Hoje em dia a diferença é que saem
pessoas com pior expressão, outros lugares comuns,
mas com em acréscimo a ilusão de que pensam por si
mesmos.
A consequência no espaço público
é evidente. Tudo se diz sem sindicância. O regime
democrático deveria teoricamente ser o mais crítico,
mas afinal acaba por ser o menos sindicado. A
liberdade é substituída pela mera flatulência
discursiva e a falha na pontaria permanente. Coxos
de referências, zarolhos na contemplação do mundo,
manetas do analfabetismo, tudo se pode dizer e o seu
contrário. Os poucos que têm algumas luzes, por
falta desta sindicância, acabam por dizer tão
grandes enormidades quanto os outros. Mais subtis,
menos perceptíveis para o grande público, mas
igualmente sofismáticas.
Um povo sem educação sólida é
facilmente manipulável. E não são relações públicas
ou jornalismo que lhe dão sentido crítico e solidez
de formação. Aí podem ser exercidas. Mas se na base
estiver tudo o resto. E o resto faz-se no ensino
básico e secundário. É esse o nervo do sistema. A
linguagem comum de todos os cidadãos. Fraco seja, aí
teremos a medida da linguagem comum. Hoje em dia:
frágil, vazia, facilmente manobrável.