Público -
03 Nov
08
Ensino público, escolas privadas e justiça social
José Manuel Fernandes
O problema da escola pública não está nos rankings:
está nas políticas do ministério, na falta de
autonomia das escolas e nos limites à liberdade de
escolha dos pais. Mas até a forma kafkiana como se
está a impor a avaliação dos professores está a
contribuir para a sua degradação
Como ontem escrevia António Barreto neste jornal, "a
publicação de todos os resultados nacionais, seguida
da elaboração dos rankings respectivos,
transformou-se num hábito, em breve será uma
tradição". E o suplemento que hoje editamos, onde à
análise dos resultados juntámos testemunhos,
opiniões e reportagens, comprova que, devidamente
trabalhado, este exercício de transparência lança
luz sobre o nosso sistema de ensino, ajuda as
escolas e os professores, é apreciado por pais e
alunos, estimula as autarquias a terem um papel mais
activo e impede o ministério e o poder político do
momento de manipular grosseiramente os resultados
(mas infelizmente não o tem levado a apoiar mais,
como devia, as escolas que mostram mais debilidades).
Mais: ao contrário do que muitos defendem, estas
listagens podem ser um instrumento de justiça
social. Só é necessário que sirvam para nivelar por
cima, não para nivelar por baixo.
O princípio básico da justiça social é que todos
nascem iguais - não é que todos são iguais. O que a
justiça social procura é garantir que, mesmo tendo
nascido em ambientes sociais diferentes, ninguém que
tenha talento, que seja trabalhador, que procure ser
melhor fique para trás apenas porque nasceu no
bairro errado, ou no concelho errado. O que o
serviço público de educação visa garantir é que os
que mais podem contribuir para a sociedade - como
cientistas ou como empresários - não são excluídos.
Ou seja, que todos beneficiam das mesmas
oportunidades. Uns saberão aproveitá-las, outros
não, mas isso faz parte da natureza das coisas.
Deste princípio decorre que o sistema de ensino ou
as políticas públicas de educação devem garantir que
ninguém fica de fora e, ao mesmo tempo, que os
melhores podem progredir até ao limite das suas
capacidades.
Isto significa que o sistema deve ser igualitário no
acesso mas discriminante no sucesso. Exactamente o
contrário do que tem sucedido com o nosso sistema de
ensino.
Ao contrário do que disse sexta-feira a ministra da
Educação, os rankings não resultam de nenhuma
"conspiração" contra a escola pública, mesmo
revelando que no topo das tabelas surgem sobretudo
escolas privadas. O que os rankings mostram, e
muitas das respostas aos inquéritos que enviámos a
dezenas de escolas confirmam, é que nas escolas
privadas há uma flexibilidade de gestão que não
existe nas públicas. De uma forma geral, nestas os
resultados obtidos pelos estudantes são melhores não
porque escolham os alunos (quem se pode dar a esse
luxo?), mas porque os pais que podem tendem a
preferir as escolas privadas. Porquê? Porque não
confiam nas públicas, não em todas, mas em
bastantes. Neste caso "poder" significa "poder
pagar", e ao permitir que se estabeleça esta
diferenciação entre as escolas públicas e as
privadas o ministério está a negar a igualdade de
oportunidades. Pior: está a agravar as
desigualdades.
Ora é necessário perceber por que motivos muitas
escolas públicas têm perdido qualidade - e,
provavelmente, ainda vão perder mais qualidade. A
primeira de todas as respostas está na falta de real
autonomia dessas escolas, uma autonomia que as
liberte da burocracia imposta de cima para baixo
pelo Ministério da Educação e, em contrapartida, as
ligue mais às comunidades locais, às autarquias, aos
que devem integrar a comunidade educativa.
Não é isso que tem sucedido: a regra é o ministério
multiplicar normas e acrescentar trabalhos
burocráticos, estabelecendo critérios cegos às
realidades locais. Um exemplo acabado disso é o
kafkiano processo de avaliação dos professores que
está mal não por existir - todos os trabalhadores
devem ser avaliados - mas por ter sido construído de
forma absurda. Uma das reportagens que realizámos
para esta edição apanhou um caso exemplar, o da
professora Ana Paula Costa da EB 2,3 e Secundária
Pascoal José de Mello, em Ansião. Ela ensina
Matemática e conseguiu que os seus 29 alunos
alcançassem uma média que os colocou em 10.º lugar a
nível nacional. Isto quando a escola, nas oito
disciplinas consideradas no nosso ranking, ficou em
362.º lugar. Devia estar orgulhosa, mas, como disse
ao PÚBLICO, "'não, não é o orgulho' que lhe faz
tremer as mãos, mas a amargura: 'É incrível, mas se
o modelo de avaliação do desempenho estivesse em
vigor no ano passado, o sucesso dos meus alunos
faria com que eu não passasse do 'suficiente'...'"
Incrível de facto. Mas bem possível para quem há
anos denuncia o autismo do ministério e, no que toca
ao processo de avaliação, critica a arrogância e
autoritarismo napoleónico da ministra Maria de
Lurdes Rodrigues.
Inutilmente, pois a actual titular da pasta vê
números, não vê pessoas nem vê escolas. E, ao seguir
cega e surda, mas pouco muda, ignora uma outra
realidade detectada pelos jornalistas do PÚBLICO: a
deserção de muitos dos melhores professores, pelo
menos dos que podem ir para a reforma com um
prejuízo mínimo. O que traz instabilidade às
escolas, o que degrada a sua qualidade, mas o que
também poupa dinheiro. E, por vezes, até agrava as
desigualdades já existentes, pois alguns dos bons
que desertam são depois acolhidos no ensino privado.
Divulgar os rankings é uma conspiração contra a
escola pública? Talvez seja melhor procurar os
culpados lá para os lados da Avenida 5 de Outubro,
em Lisboa, onde fica a sede do ministério...