Público - 4 Out 03
O Lazer e o Saber
Por HELENA MATOS
"Quase meio milhar de investigadores de todo o país juntaram-se esta
semana para voltar à escola. Os cientistas voluntariam-se para promover a
cultura científica em Portugal, disponibilizando-se para fazer divulgação
de temas de ciências em escolas básicas e secundárias. (...) Nomes como
José Mariano Gago, ex-ministro da Ciência e da Tecnologia e actual
director do Laboratório de Instrumentação de Partículas, João Sentieiro,
director do Instituto de Sistemas e Robótica do Instituto Superior
Técnico, ou João Lobo Antunes, neurologista e investigador do Instituto de
Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, encabeçam a lista de 436
nomes."
Esta notícia do PÚBLICO de 2 de Outubro traduz, sem dúvida, uma das
decisões mais inteligentes e positivas tomadas recentemente na sociedade
portuguesa. Logo a começar porque, a não ser alguns autores, geralmente de
literatura infanto-juvenil, é raro ver aparecer nas salas de aula alguém
que não os respectivos professores. Às vezes lá vai um jornalista mas
pouco mais. Nem a escola tira partido do mundo que a rodeia, nem os
cidadãos mais destacados assumem as responsabilidades que lhes advêm do
seu privilegiado estatuto.
Por exemplo, seria ou não eficaz ver-se Luís Figo, Rui Costa, Deco... nas
escolas, no âmbito de campanhas contra a toxicodependência ou de promoção
do desporto escolar? Seria ou não interessante levar-se a gente das
Produções Fictícias às aulas de Português?! Porque não prevêem os
subsídios às companhias teatrais idas dos actores às escolas não para
representarem uma peça, um dia, mas sim para fazerem um trabalho
continuado?...
Mas esta ida dos cientistas às escolas tem um outro valor a acrescentar ao
já enorme mérito que é o falar-se de ciência neste país onde à excepção
dos avanços da Medicina, se encara com temor medieval o progresso e a
ciência. O contacto com os investigadores é essencial para destruir os
preconceitos que, em Portugal e fora dele, rodeiam os cientistas. Em
geral, os cientistas são excelentes comunicadores.
Seja nas suas áreas de investigação seja em quaisquer outras. São gente
com graça. Imensa informação. Militantes de causas várias. Bons contadores
de histórias. Em resumo são a antítese do estereótipo reinante sobre o
cientista. A saber, e este saber é diariamente debitado por filmes,
novelas e outros fazedores do senso comum, os cientistas são sempre uns
seres apardalados, de óculos fora de moda, pobretanas e alheios a coisas
como a paixão ou o humor. A excepção a este quadro são os cientistas maus.
Estes vestem fatos de executivo, têm óculos modernos e trabalham
invariavelmente nas áreas da genética e da engenharia nuclear. Tal comos
os cientistas bonzinhos são desprovidos de sentido de humor mas
concede-se-lhes que tenham dinheiro e libido. Bons e maus perderam o
melhor da vida no seu reino de pipetas e provetas, rodeados por
calhamaços, nome dado, em Portugal, aos livros que têm a pretensão de
ensinar alguma coisa a alguém.
Por antítese a esta imagem cinzenta do mundo do saber, (no caso, o da
ciência, mas o estereótipo para as letras ou as matemáticas ainda é mais
deprimente!), pinta-se de cor-de-rosa o mundo do lazer. As pessoas do
desporto, os cantores, os actores, os modelos... são apresentados como
gente divertidíssima, felicíssima e interessantíssima. Como se a sua vida
particular fosse a continuação, em superlativo absoluto privado, dos suas
actuações. Uma espécie de sessão de autógrafos contínua. E nem as
depressões, as tentativas de suicídio, os casos de toxicodependência, os
divórcios em série e os relatos de maus tratos conjugais, frequentíssimos
nesse mundo do papel couché brilhante, borram a pintura do retrato oficial
de quão interessantes, modernos e felizes são todos aqueles que
representam, cantam, jogam... enfim que nos preenchem o lazer.
Porque o ideal dos portugueses, sobretudo enquanto jovens, não é aceder e
transformar o mundo pelo saber mas sim serem protagonistas do mundo do
lazer. Para tal estão dispostos a todos os sacrifícios. Pagam
monstruosidades a qualquer coisa que se intitule escola de modelos e lhes
rometa colocá-los em cima duma passerelle. Aceitam condições bizarras de
produtores e agentes para terem o privilégio de cantar dois minutos, à
borla, no final dum programa de televisão, já com a ficha técnica a
correr-lhes em cima da cara ou simplesmente para aparecerem. Devotos comos
os fiéis dum místico misantropo ficam em transe se uma qualquer estrela
dessas efémeras constelações lhes estende a mão. Calam a má educação e a
insolência de que são vítimas nos bastidores desse mundo onde, na miragem
de ficarem sob as luzes da ribalta, se deixam achincalhar duma forma que
noutros locais e noutras circunstâncias, nomeadamente no mundo do saber,
lhes causaria a mais justificada revolta. Por exemplo, como reagiriam
muitos pais se ouvissem um professor de Matemática fazer aos seus filhos
apreciações do teor daquelas que proferem os membros do júri do programa
Ídolos?
O pior é que, quanto mais subserviente é a relação que as pessoas têm com
o mundo do lazer, seja como candidatos a protagonistas seja como
usufrutuários, mais arrogante é a forma por que se relacionam com o saber.
Foi esta sobrevalorização do lazer e este denegrir do saber que, em parte,
legitimou que a escola se pusesse numa atitude de quem pede desculpa por
vir interromper a brincadeira que a vida deveria ser sempre. Foi desta
sobrevalorização do lazer que saltaram livros que se chamavam
salta-pocinhas e outras palermicezinhas para que os meninos não se
traumatizassem diante da palavra Matemática ou Português. É aliás esta
sobrevalorização que legitima, em boa parte, o "Não às propinas". Ninguém
de boa fé acredita que um aluno, em Portugal, deixe de estudar por não
poder pagar as propinas. Infelizmente os filhos das classes menos
privilegiadas acabam muito frequentemente por não entrar no ensino
público, e são eles quem paga (e muito!) no ensino superior privado por
cursos de qualidade, utilidade e reconhecimento duvidosos. O "Não às
propinas", e estamos a falar de propinas que representam uma pequeníssima
parcela do custo real que o Estado suporta por aluno, é a palavra de ordem
duma sociedade que não valoriza o saber, de reitores que não assumem as
suas responsabilidades e de estudantes que, muito fartos de viver melhor
que todas as gerações que os antecederam, resolveram curtir umas greves.
PS - Do gasóleo agrícola às licenças de construção em zonas protegidas
para obras de "relevante interesse", os regimes excepcionais prestam-se a
várias irregularidades. No caso do acesso ao ensino superior o regime
excepcional já comporta per si aspectos questionáveis a que se juntam as
ainda mais questionáveis excepções ao regime excepcional.
Não duvido que a filha do ministro dos Negócios Estrangeiros merecia
entrar em Medicina. Tal como não duvido que igual merecimento têm tantos
outros estudantes que, por escassas décimas, ficaram impossibilitados de
frequentar essa licenciatura. Dir-se-á que, se a jovem em causa tivesse
ficado mais um ano em Madrid, teria entrado no curso da sua preferência
sem qualquer óbice. Mas é precisamente aí que está a questão: não ficou!
Em política, como em tudo o mais, o que fica dos nossos actos não é o que
teríamos feito se... É o que fazemos.
[anterior] |