| Público - 13 Out 03
 É Preciso Mudar a Escola
 Por FERNANDO J. PIRES CALDEIRA
 
 Continuam a surgir no PÚBLICO, com alguma regularidade, artigos de opinião 
      cujos autores, em geral professores, aparentemente não se conformam com a 
      revisão curricular em curso no nosso sistema de ensino não superior. Com 
      efeito, sendo notório, desde há vários anos, que a situação neste 
      subsistema de ensino era e é calamitosa, restava a esperança de uma 
      intervenção eficaz, em termos políticos e técnicos - primeiro do anterior 
      governo e depois do actual -, sob pena do país no futuro vir a enfrentar 
      problemas cada vez mais graves. Em vez disso surgiu ainda no governo PS 
      uma revisão que poderíamos classificar de "formalmente correcta" (de modo 
      a tentar agradar a todas as "forças vivas") mas que veio depois a ser 
      remendada e aparentemente simplificada, pelo actual governo, de modo a, de 
      acordo com os argumentos oficiais, reduzir os encargos financeiros. A 
      sensação de que nestas alterações houve influência directa de alguns "lobbies" 
      facilmente identificáveis é no entanto muito forte.
 
 Quer nos princípios fundamentais e nas suas linhas gerais quer a nível de 
      programas das diversas disciplinas, onde se esperava encontrar, bem 
      identificados, os problemas existentes, de forma a poderem ser corrigidos 
      e ultrapassados, apenas há retórica pedagógica, muitas vezes em 
      contradição com os métodos depois apresentados para concretização dos 
      objectivos enunciados. Este era aliás um traço característico da revisão 
      preparada pelo anterior governo. Como positivo há apenas a assinalar o 
      aumento da escolaridade obrigatória e o redesenho dos ciclos. Isto quando 
      estamos perante um sistema que deveria ser repensado de alto a baixo, isto 
      é, desde a organização, currículos e metodologias de todos os ciclos, até 
      à selecção e formação inicial e contínua dos professores.
 
 Quem pensa assim não sente necessariamente "nostalgia pelo liceu de elite" 
      nem lamenta a "massificação da escola", como afirmou Augusto Santos Silva 
      no PÚBLICO de 26 de Julho, pois tudo aponta para que continuemos a ter um 
      sistema socialmente discriminatório e organizado de modo a garantir à 
      classe média culta - infelizmente ainda uma minoria no nosso país mas 
      muito activa social e politicamente na defesa dos seus interesses, em 
      geral corporativos -, o acesso aos melhores cursos do ensino superior 
      público. Temos pois, em termos sociais, uma "escola de massas" e que não 
      forma novas elites; apenas reproduz as já existentes. A razão é simples: a 
      escola que temos não tem qualidade e em muitos aspectos simplesmente não 
      funciona. Não faz portanto qualquer sentido invocar fantasmas para 
      defender o actual sistema.
 
 Na escola do antigo regime, assumidamente elitista, o acesso a um ramo 
      (liceu) era restringido por razões económicas e no outro (escolas 
      técnicas) determinadas matérias (filosofia, literatura, matemática pura, 
      línguas estrangeiras... ) não eram simplesmente leccionadas de modo a 
      garantir a reprodução da divisão social existente, e não por incapacidade 
      intelectual dos que só podiam seguir essa via. Mas a escola actual, 
      pretensamente igualitária, ao deixar a exigência e o rigor para outras 
      esferas de sociabilização acaba por ter igual papel. Fá-lo no entanto 
      perversamente (no sentido técnico do termo), apoiando-se para isso no 
      discurso a que, por analogia, poderemos chamar de "pedagogicamente 
      correcto". Se dúvidas houvesse sobre esta questão bastaria comparar a 
      importância dada, todos os anos, à questão da seriação da minoria que é 
      candidata ao ensino superior, com a importância dada ao facto da grande 
      maioria dos jovens estar excluída à partida deste grupo por não completar 
      o ensino secundário e muitos destes nem sequer o chamado ensino básico.
 
 Como irá ser resolvido o problema da Matemática, e das ciências, que 
      atinge a maioria dos alunos? Continuando a aligeirar ou a excluir as 
      partes mais complexas? E a questão da língua materna, e das línguas 
      estrangeiras, que atinge principalmente os filhos das classes com menores 
      recursos e geralmente menos cultos? Continuando a reduzir a exigência e 
      subalternizando a literatura?
 
 O caso da Matemática é paradigmático, pois mostra como se tem quase sempre 
      escolhido as piores soluções e sacrificado os objectivos a longo prazo aos  
      objectivos imediatos. Pese embora o facto dos mais favorecidos 
      economicamente poderem sempre recorrer a explicadores, o facto da 
      aprendizagem da Matemática exigir sempre actividades organizadas para tal, 
      ao contrário do Português, por exemplo, acaba por fazer com que o 
      insucesso nesta disciplina seja "mais democrático". Por isso esta 
      disciplina sofreu nos últimos anos alterações - para as quais os 
      professores de outras áreas científicas e tecnológicas não foram ouvidos 
      nem achados -, não nos métodos de ensino nem nas regras de progressão, 
      como seria de esperar, mas antes nos conteúdos e nos métodos de avaliação 
      que abrangem agora "outras competências". Os resultados eram de esperar e 
      foram agora comprovados nos resultados dos exames do 12º ano. Como os 
      alunos têm menos conhecimentos a nível de cálculo matemático, ferramenta 
      fundamental para o estudo da Física, esta acabou por se tornar a 
      disciplina com piores resultados.
 
 Qualquer professor com experiência no nosso sistema de ensino já chegou 
      com certeza à conclusão de que simplificar e facilitar não resolve 
      qualquer problema, nem do ensino nem dos alunos, apenas os avoluma e adia. 
      Até porque o problema principal não está na complexidade própria de alguns 
      assuntos, que pode ser sempre ultrapassada com mais ou menos esforço e 
      disciplina interior, com mais ou menos investimento de tempo, com maior ou 
      menor apoio; mas na organização da escola e no empenho e motivação de 
      professores e alunos.
 
 O facilitismo começa no entanto a atingir níveis inadmissíveis e 
      indisfarçáveis. Apesar do secundário ainda continuar a ser uma barreira 
      intransponível para muitos jovens, é do conhecimento geral que muitos 
      alunos chegam ao ensino superior muito mal preparados, mesmo nas 
      disciplinas nucleares do curso que pretendem seguir. Faz lembrar a 
      história, real ou imaginada, de um indivíduo que ao assistir a uma 
      conferência de Einstein sobre a Teoria da Relatividade lhe pediu que 
      explicasse novamente, simplificando, pois não tinha conseguido entender os 
      fundamentos daquela teoria. Einstein acedeu, após o que o seu interlocutor 
      voltou a afirmar que ainda não tinha entendido e perguntou se seria 
      possível simplificar mais um pouco. A situação repetiu-se outra e outra 
      vez até que o indivíduo finalmente exclamou: "Ah, agora já entendi!". 
      "Pois...", replicou Einstein, "mas o que eu acabei de explicar agora, já 
      não é a Teoria da Relatividade...".
 
 Do mesmo modo que simplificar demasiado acaba por nos desviar dos 
      objectivos que pretendemos alcançar, também a escola acabará por se tornar 
      um obstáculo ao aumento da produtividade e à modernização do país, se se 
      alargar a escolaridade obrigatória para doze anos e depois se exigir 
      apenas o que se pode facilmente aprender em seis. Além de, por este 
      processo, continuarmos a enganar os jovens e muitas famílias.
 
 Professor do Ensino Secundário
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