Público - 13 Out 03

Entre o Ridículo e o Trágico
Por MÁRIO PINTO

1. Do livro de Eça de Queirós, "Uma campanha alegre", recorto o seguinte excerto: "Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 reis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. Resulta uma pobreza geral. (...) o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado".

Sem dúvida, desde então o nosso País progrediu, económica, social e culturalmente. Mas a caricatura de Eça continua a ter actualidade. Hoje, o Autor de certo faria algumas correcções: seria justo que retirasse dos exemplos a classe eclesiástica (cujo património foi aliás expoliado pelo Estado por mais de uma vez, e cujo estatuto é agora de separação); que não visse nos militares uma ociosidade; que não fossem os proprietários de hoje a tipificar a carreira parlamentar. Mas, em substituição destes exemplos, poderia acrescentar vários outros. Se escrevesse na presente conjuntura, não podia omitir os estudantes do ensino superior público - do privado podia, que esses não merecem subsídios do Estado, embora continuemos sem saber o porquê da discriminação.

Eça visava uma situação generalizada e aberrante, que chocava com a mentalidade liberal de então. Ele devia querer significar que a sociedade civil era fraca e sem iniciativa; e que, em vez de se desenvolver e enriquecer pelo seu trabalho, optava por se dependurar parasitariamente no Estado fatalmente pobre e endividado. Pode dizer-se que, mais de um século passado, a situação se revolucionou? Não. Comparativamente, não houve uma clara inversão nos factos: a sociedade civil portuguesa continua a depender excessivamente do Estado. E agora desse outro prolongamento de Estado que é a União Europeia.

2. Houve, entretanto, uma revolução nas ideias. O que, no tempo de Eça, estava mal por conceito passou hoje a ter outro enquadramento conceptual. Então, não existia ainda o Estado Social, que assume constitucionalmente a função de promover o bem-estar através da garantia de serviços de interesse público, como na educação escolar, na saúde e na segurança social. E de uma vasta quantidade de outras políticas públicas de subsidiação, a título de prevenção, de apoio, etc.. Assim, o Estado Social dos nossos dias legitima a subsidiação pública aos que necessitam dela para gozarem de uma igualdade de oportunidades. Portanto - dir-se-á - a realidade permanece, foi só o problema que desapareceu.

Não creio isso. "Mutatis mutandis", temos hoje um problema equivalente ao dos tempos de Eça, com as mentalidades e as ideologias que não se bastam com o Estado Social porque reivindicam um Estado Providência. O Estado Providência constitui uma absolutização, e desse modo uma perversão do Estado Social, implicando uma absorção da sociedade civil no Estado - ou, se se preferir, uma estatização da própria sociedade civil. Foi isso o que a Constituição de 1976 desejou: estatizar o mais possível a sociedade civil. É verdade que entretanto a Constituição foi em parte revista. Mas um dos maiores problemas que Portugal ainda tem é o de acabar essa revisão para eliminar restos do Estado Providência, e assim consolidar um justo e necessário Estado Social.

O Estado Providência conduz à injustiça de sobrecarregar os contribuintes, incluindo proporcionalmente os contribuintes pobres, para pagarem sistemas de serviços públicos gratuitos ou quase gratuitos para quem não necessita deles. Conduz com isso à burocracite e ao desincentivo do tudo igual para todos, à desmoralização dos contribuintes, ao défice público. A uma mentalidade de falso e injusto igualitarismo.

Andamos aflitos com a questão do défice, e a ver por onde se corta, como na segurança social, que era das últimas coisas em que se devia cortar. Antes disso, há mil sistemas de injusto e exagerado financiamento público. Como no caso das propinas do ensino superior público, que são quase insignificantes. Mas parece haver uma enorme hesitação em ver a questão na sua raiz. Entretanto, com as dificuldades financeiras e burocráticas que inevitavelmente o Estado Providência provoca, vai-se socavando a ideia da justiça do Estado Social; e vai-se tornando ambígua a defesa da sua sustentabilidade financeira e da sua compatibilidade com o crescimento económico. O que é muito grave.

3. As actuais reivindicações estudantis não se limitam ao apoio aos estudantes necessitados. Exigem um baixo valor para todos nas escolas públicas. Não são generosas e progressistas; são classistas e ideológicas, é óbvio. Mas têm um pretexto constitucional no preceito que manda ao Estado "estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino" (art. 74º, 2, e) - para além da gratuitidade do ensino básico universal obrigatório (art. 74º, 2, a). Sem a revisão constitucional desta e doutras normas da mesma orientação, é mais difícil contribuir para a sanidade das mentalidades e das ideologias providencialistas.

Não obstante, é pertinente lembrar aos estudantes contestatários que quem paga o diferencial das baixas propinas dos numerosos estudantes abastados das escolas públicas de ensino superior, são os contribuintes e proporcionalmente os pobres. E se a Constituição diz o que diz para o ensino, também impõe outros serviços públicos e não há dinheiro para tudo. Temos um grave défice público. Os mediáticos líderes estudantis pensam nisso? E não reconhecem que há outras necessidades prioritárias no País, em termos de solidariedade?

Em qualquer caso, uma coisa são manifestações, outra coisa é o que tem sido dito e feito. Incluindo ilegítima invasão de instalações públicas, violentação do funcionamento de órgãos universitários, humilhação de autoridades, etc. Com a cúmplice (em vez de independente e crítica) cobertura de repórteres televisivos. Interroguemo-nos por fim. Uma lei da República foi publicada e entrou em vigor. Uma lei legítima, democrática, válida, regular. Que pretendem os estudantes: uma desobediência civil à lei, como já alguns dirigentes disseram publicamente? Uma revogação da lei por coacção sobre os órgãos de soberania? Isso é inadmissível, em qualquer caso. De duas uma: ou não se leva a sério, e é ridículo; ou se leva a sério, e é trágico. Mas nada menos.

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