Público - 31 Out 05

 

Não, não e...não!

Graça Franco

Sócrates decidiu corajosa e honestamente não quebrar a sua promessa eleitoral de que a actual lei do aborto só será alterada depois de passar pelo voto popular em referendo. Favorável ao aborto livre e a pedido até às dez semanas, como contemplado na proposta do PS, Sócrates decidiu, mesmo assim, não quebrar o pacto, feito com o eleitorado, optando por não ceder à pressão comunista, bloquista e radical socialista para decidir na Assembleia o que o povo recusou em referendo.
O primeiro-ministro mostrou, com isso, com grande pena de alguns dos seus companheiros de partido, que é capaz de resistir à tentação de confundir maioria absoluta com poder absoluto. Merece que se lhe tire o chapéu tal a pressão ideológica a que estava sujeito. Eu, que já aqui me mostrei várias vezes contra a liberalização e não acho a vida referendável, tiro-lhe respeitosamente o meu!
Sócrates mostrou saber que a maioria parlamentar de que dispõe não lhe foi concedida a qualquer preço. A sua constituição só foi possível porque em campanha soube conquistar o voto centrista para o qual a questão do aborto é uma questão sensível. Esse eleitorado moderado, essencial à sua chegada ao poder, esquecerá a fraude dos impostos mas jamais lhe perdoaria esta traição.
Nas hostes socialistas há, contudo, uma ala radical que sofre de absoluto autismo. Ainda não percebeu que o seu discurso, e a sua visão do mundo estão definitivamente ultrapassados. Jamais chegariam ao poder por si. Mas nos últimos anos esse poder acabou por lhes ser oferecido de bandeja das mãos dos chamados "moderados" que, em rigor, eles só admitem no seu seio, enquanto veículos instrumentais de assalto ao poder. É a ala que jamais perdoou a Guterres o seu catolicismo e que agora acusa Sócrates (insuspeito de qualquer catolicidade ou do mais leve conservadorismo em moral e costumes) de estar a ceder à pressão da Igreja. Essas alminhas ainda não perceberam que esta não é sequer uma questão religiosa mas, mesmo que o fosse, existe lugar na sociedade portuguesa para um socialismo cristão que não confunde Igreja e Estado, nunca se reviu na exacerbação da laicidade da primeira República, nem subscreve esta reedição pós-moderna no seu anti-religiosismo primário.
Sob a capa da "despenalização" a proposta socialista visa unicamente tornar legal, até às dez semanas, o aborto livre e a pedido da mãe. Sem que esta tenha de apresentar um único argumento justificativo. Não precisa evocar razões dramáticas de violação ou de saúde física ou psíquica própria ou do feto, nem sequer razões de ordem económica. E não precisa porque todas essas razões já hoje estão contempladas na lei para prazos bem mais generosos! É sobretudo falso o argumento que tenta apresentar a lei como forma de libertar umas quantas "pobres vítimas" da cadeia. Ela continuará reservada, mesmo na nova lei, para quem abortar sem motivo às 11 semanas ou por motivos eugénicos às vinte e cinco.
A grande inovação da nova lei é assim a de tornar legal, legítima, e paga com o dinheiro dos contribuintes, a prática de abortos que podem ter por base o mais fútil dos motivos (em teoria, e passe a demagogia, pode alguém querer abortar apenas porque tem marcadas para dali a dois meses as férias de esqui que é um desporto incómodo para grávidas). Esse direito ser-lhe-á reconhecido desde que o reclame, junto dos serviços de saúde, até às dez semanas de gestação.
Trata-se do reconhecimento absoluto do direito de propriedade sobre o conteúdo dos respectivos ventres (tenham ou não dentro deles outras vidas) das donas absolutas das respectivas "barriguinhas".
Apresentar a necessidade de liberalizar o "aborto a pedido" como a grande prioridade nacional, no estado em que se encontra o país é, no mínimo, um insulto. Ninguém, pondo de lado as paixões ideológicas e em seu perfeito juízo, compra esta alteração à lei actual como uma questão "básica de direitos humanos " como o texto de Ana Sá Lopes, ontem, aqui tentava defender. Mesmo os que defendem a despenalização, como o célebre médico autor do livro que compila várias teses sobre o aborto, acrescentam a necessidade de impor algum limite à "irresponsabilidade" absoluta que ela pode indirectamente promover. Defendem mesmo a vantagem de impor limites, por exemplo, ao número de abortos deste tipo permitido a cada mulher.
O texto da Ana Sá Lopes acaba, aliás, a trair o argumentário pró-abortista ao explicitar o verdadeiro motivo da pressa socialista. Afinal ficamos a saber que era sobretudo preciso aproveitar a oportunidade de alterar a lei no Parlamento para evitar o risco de voltar a perder na rua. Porquê? Porque, como acaba por revelar a cronista, o adiamento pode ser afinal causa da derrota, "as possibilidades de isso acontecer - admite - quintuplicaram, porque a consulta será feita a meio do mandato e a população estará sensível a votos de protesto contra o Governo". Entendamo-nos: ou bem que o povo não é tonto e numa questão urgente, e básica de direitos humanos, jamais a confundirá com essas coisas menores de votos de protesto e, nessa linha, quanto mais esclarecido estiver melhor vota (e agora não faltará tempo para o esclarecer!), ou bem que o voto do povo só se consegue à pressa e enquanto este não se der bem conta do que efectivamente é posto à votação?! Neste último contexto, para quê a democracia? Bastava um despotismo iluminado! Alguém o quer?

Obrigado Rosa!

Entrei na estação de Campanhã e achei-a repleta de capas negras, numa espécie de Primavera antecipada em pleno Inverno. As capas enquadravam uma segunda tribo de T-shirt branca e grinaldas de papel com orelhas de burro. Nas costas a inscrição da escola superior de educação. Ao vê-los a saltitar à ordem dos mais velhos não pude deixar de pensar que as orelhinhas eram um sinal premonitório do estado de decrepitude adiantado do nosso sistema de ensino. Desci a escadaria ao som do "apito-comboio", entoado como se de meninos da pré-primária se tratassem...
Perguntei-me se nenhum dos saltitões se sentiria ridículo. Se todos achavam a cena genuinamente divertida ou se a diversão era exclusiva dos praxantes e pelos piores motivos. Pensei se seria fácil para cada um dizer o indispensável "não" e abdicar de todo aquele folclore. Há uns anos escrevi aqui, exactamente sobre o fenómeno da praxe, um texto em que fiz o elogio desta palavra. No comboio, no dia seguinte à morte de Rosa Parks, foi-me impossível não a recordar interrogando-me sobre quantos, dos que ali estavam, saberiam a história desta mulher e a força de mudança contida no mais solitário NÃO individual.
Rosa foi a costureira negra que, em 1955, deu o pontapé de saída para mudar o curso da América e a vida de todos os negros no mundo ao responder com um Não à ordem do motorista para que se levantasse, deixando a fila de cadeiras livre para o único branco que ali se iria sentar. Contrariando a lenda, Rosa contou, muitas vezes, que não recusou dar o seu lugar no autocarro por estar particularmente cansada. Fê-lo tão só para mostrar "a um certo motorista arrogante" que a injustiça não é tolerável e não há medo ou comodismo que possa vencer a força de cada consciência. A uma lei injusta só há que responder Não. Neste sétimo dia recordo-a de novo para lhe dizer um último: Obrigado por ter existido! Por ter dito Não! Jornalista
 

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