Diário de Notícias
- 09 Out 06
A patética
actividade de promoção
João César das
Neves
Agora, que se aproxima o Orçamento do Estado,
é bom saber que existe uma actividade que, mais que
todas, absorve os recursos nacionais: a promoção. A
maioria dos institutos públicos, repartições e
subsídios destinam-se apenas à promoção. Nada suga
tanto o dinheiro dos nossos impostos como ela.
Que é que se promove? Isso é fácil: tudo. Promove-se
o emprego, o crescimento e a tecnologia. Mas também
se promovem a renda de bilros, a plantação de
beterrabas e a vida sexual saudável. Incentivam-se o
vale do Ave, o teatro de intervenção e a condição
feminina. Apoiam--se as energias renováveis, o lince
da Malcata, a cultura moçárabe e a alimentação
racional. As promoções mais importantes são as mais
abstractas: qualidade, paz, bem-estar.
Como é que se promovem essas coisas? Isso também é
fácil: gastando milhões. Muitos milhões, mesmo. Se
fossem eliminadas as despesas de promoção, não só se
eliminava o défice, mas dezenas de organismos e
muitos ministérios também seriam totalmente eli-
minados.
Mas como é que esses milhões promovem essas coisas?
Bem, há muitas maneiras. Esferográficas,
porta-chaves, blocos, bonés e camisolas são das mais
frequentes. Ultimamente os tapetes para rato de
computador tornaram-se muito populares. Nunca
sentiram a protecção civil ou os cuidados paliativos
a serem promovidos ao esfregarem o rato no tapete?
Nunca viram o enorme incentivo que dão à camada de
ozono ou ao turismo de qualidade quando penduram as
chaves nas fitas coloridas?
Outra forma muito utilizada são os estudos. Faz-se
uma comissão que conduz um estudo, sempre vasto e
profundo, da terrível situação actual. No final há
uma sessão pública, que corre sempre muito bem, e o
estudo é cuidadosamente guardado em gavetas
especiais que há nos gabinetes do Estado para esse
efeito. Um dia, alguns desses estudos vão mesmo
servir de base a novos estudos de novas comissões.
Mas a melhor forma de promover qualquer coisa é
realizar colóquios, encontros, simpósios e certames.
Ah! E também é bom publicar revistas. Muitas
revistas, boletins, sites e newsletters,
com textos que ninguém lê e fotografias dos
promotores. Aí é que as coisas são mesmo promovidas!
Os reputados especialistas escrevem ou dizem as suas
comunicações e sente-se logo o insucesso escolar a
retroceder, a violência doméstica a acalmar, as
doenças cardíacas a melhorarem. Ultimamente, o
colóquio atingiu a forma definitiva de promoção: o
convidado estrangeiro. Fica um pouco mais caro, mas
vale mesmo a pena. É sempre um homem sorridente com
casaco aos quadrados e gravata de malha, ou uma
mulher alta e forte com vestido escuro e sapatos
práticos. Então é que o alcoolismo se cura, as zonas
degradadas florescem, a sociedade fica igualitária,
justa, dinâmica, feliz!
A promoção tem uma outra característica importante:
quanto mais se faz mais tem de ser feita. Após anos
de esforços e grandes sucessos na promoção do meio
ambiente, da qualidade dos transportes e da
igualdade de géneros, espíritos tacanhos esperariam
que se gastasse um pouco menos nisso. Mas não.
Gasta-se cada vez mais, porque é urgente promover
essas coisas.
Alguns maldosos acham até que esta coisa da promoção
é um enorme desperdício ou, pior, uma forma de uma
multidão de parasitas viver à custa do dinheiro dos
pobres, fingindo revolver problemas insolúveis. Mas
esses não entendem a questão. É verdade que grande
parte da promoção é só tralhas e tretas que nada
solucionam, que repetem sempre os mesmos chavões a
custos explosivos. Mas estas críticas esquecem o
centro da questão: o drama da impotência.
Vivemos num tempo em que toda a gente acha que o
Estado serve para resolver todos os problemas. Para
tudo tem de haver uma política, lei, programa.
Depois, como a vida real é dificil, e quem realmente
lida com ela são as pessoas e a sociedade, os
poderes públicos enfrentam a terrível situação de
serem responsáveis por algo que lhes escapa. Alguns
têm a ilusão de poder, outros já perceberam a tolice
da circunstância, mas todos serão crucificados se
não fizerem nada. Daí esta intensa actividade de
promoção. No final, os problemas ficam na mesma, mas
gastou-se muito dinheiro, os responsáveis
mostraram-se dinâmicos e interessados e o público
ficou consolado. E, quem sabe, até pode ser que as
pessoas acabem, finalmente, por tratar do problema
em suas casas. Talvez se decidam a fazer o que
devem, em vez de descarregarem as culpas sobre o
pobre Estado.
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