Público - 22 Out 06
O Governo sob pressão
editorial Manuel Carvalho
Os sinais de desorientação do Governo no
inacreditável episódio das tarifas de electricidade
não resultaram apenas da distracção do ministro da
Economia, da falta de tacto da entidade reguladora,
ou da absoluta impreparação que o secretário de
Estado adjunto da Indústria e Inovação revelou para
exercer cargos públicos de alta responsabilidade. A
narrativa do episódio começou, desenvolveu-se e
acabou da forma que se sabe porque o Governo acusou
os efeitos do mais acentuado período de pressão
pública desde que tomou posse. No final da história,
sobram duas conclusões: ao contrário do que José
Sócrates apregoa, o Governo não é, nem podia ser,
imune à conflitualidade social; depois, a tentação
de reagir sistematicamente aos protestos e críticas
com nariz empinado e discurso autoritário pode gerar
cenas lamentáveis como a que o secretário de Estado
citado protagonizou.
Todos estes episódios poderiam ter o significado de
incidentes passageiros se em causa não estivesse um
contexto com o qual o Governo terá de se confrontar
com maior frequência nos próximos tempos. Como
várias personalidades reconheciam ontem nas páginas
do PÚBLICO, a pressão e as dificuldades do Governo
vão aumentar em 2007. Não apenas porque é previsível
o aumento da conflitualidade social; também porque
no PS parece consolidar-se uma facção activa de
crítica, liderada por Manuel Alegre e alimentada por
todos os militantes das causas da Esquerda
tradicional que não se revêem na agenda de José
Sócrates; ou ainda porque é provável que o discurso
contestatário da oposição comece a ser absorvido por
um público mais alargado, o que não deixará de se
reflectir nos índices de popularidade do Governo
que, em boa medida, têm servido para relegitimar o
seu discurso reformista.
O próximo ano será, assim, decisivo para se avaliar
a consistência e credibilidade do Governo. Será
também o momento em que José Sócrates poderá revelar
a fundo quem é e o que realmente vale. Porque, por
muito que a economia continue a recuperar, vai
chegar a hora em que centenas de milhares de
funcionários públicos, incluindo professores, vão
começar a sentir no quotidiano os efeitos das
medidas até agora enunciadas em discursos ou
propostas no papel. Chegará também o momento em que
milhares de cidadãos terão de se confrontar com o
agravamento dos custos dos serviços de saúde
públicos, com portagens não previstas ou com os
prováveis danos causados pelas greves.
Até ao momento, Sócrates parece determinado a
avançar. A proposta de orçamento que fez chegar à
Assembleia faz depender o cumprimento das metas
macroeconómicas de reformas polémicas, como as
previstas para a função pública ou para as finanças
locais e regionais. O Governo enveredou portanto por
um caminho sem retorno. Só o percorrerá se não
hesitar e se não sucumbir à pressão. Os sinais que
alguns membros do Governo emitiram nos últimos dias,
porém, não garantem que Sócrates dispõe de uma
equipa suficientemente coesa e preparada para os
tempos duros que se avizinham. O fantasma da
remodelação começa a pairar no ar.