É óbvio que o drama vivido pelas centenas de
milhares de alunos, famílias e docentes que aguardam a
clarificação de quando e em que condições vai finalmente abrir o
ano lectivo tem como causa imediata as deficiências das soluções
informáticas adoptadas para a gestão do processo de colocação de
professores. Mas por detrás desta manifestação de incompetência
técnica e administrativa, evidenciada por anteriores e actuais
responsáveis do Ministério da Educação, está a incúria acumulada
e a negligência com que as questões fundamentais do ensino
público têm sido tratadas em Portugal.
As responsabilidades maiores têm de ser
atribuídas, em primeiro lugar, à anterior equipa ministerial que
se lançou num processo de mudança radical de processos
administrativos e informáticos sem respeitar as regras mínimas
de segurança ou sequer de bom senso que as práticas mais
elementares da gestão aconselham. Mas a actual equipa não pode
ser isentada de responsabilidades na medida em que devia ter
tido o cuidado de se inteirar em profundidade da dimensão dos
problemas - que já se estavam a manifestar - e tomar, em
conformidade, as medidas de prevenção e contenção das
consequências mais gravosas que acabaram por explodir. Terminar
o processo à mão, depois das sucessivas e naives demonstrações
de confiança na boa conclusão do processo informático, é uma
saída notável que se arrisca a ocupar um lugar de destaque no
anedotário político internacional: os portugueses voltam à
tecnologia do lápis na orelha para fazer numa semana aquilo que
não conseguem fazer em seis meses com recurso a modernos
processos informáticos.
O falhanço do processo informático de
colocação de professores acontece, também, numa semana em que
foram divulgados pela OCDE dados relativos ao desempenho dos
sistemas educativos, a nível internacional. E, também aqui, a
leitura que decorre da comparação do sistema educativo português
com os dos demais países considerados na amostra, só pode levar
à conclusão de que a nossa situação, não obstante todos os
investimentos efectuados - e que não andam longe da média dos
países que integram a organização - é, simplesmente, desastrosa.
Na comparação dos níveis de formação da população com idade
compreendida entre os 25 e os 54 anos, Portugal só tem atrás de
si o México, perdendo em toda a linha para países como a Grécia,
Irlanda, a Polónia, a República Checa, a Eslováquia ou a
Hungria. Mas, mais grave do que isso, praticamente não se
registou evolução entre 1991 e 2002, período que é objecto de
análise no relatório. Portugal continua a dispor de uma
população cujo nível de formação é, em larga maioria, inferior
ao 2º ciclo do ensino secundário (cerca de 80%), ficando-se nos
11% no que respeita à formação de 2º ciclo e pós-secundário não
superior, e 9 % no que respeita à formação de nível superior.
Para se ter uma ideia da situação em que nos encontramos basta
comparar com as médias dos idênticos níveis de formações dos
países da OCDE: 33%, 44% e 22%, respectivamente.
Tendo presente esta realidade do sistema
educativo nacional, os problemas relacionados com a colocação de
professores adquirem uma outra dimensão que remete para o plano
das opções fundamentais e da condução estratégica da política
educativa em Portugal, que, negligentemente, quando não
deliberadamente, tem sacrificado a credibilidade do sistema de
ensino público em benefício da consolidação e expansão do
sistema de ensino privado. Depois deste episódio quais os pais,
com um mínimo de bom senso e condições económicas, que não
pensarão duas vezes antes de colocar os seus filhos numa escola
pública, por melhores que sejam as suas referências?
A desresponsabilização do Estado
relativamente à organização e gestão eficiente de um sistema
educativo de base pública e universal é uma opção errada que, a
ser concretizada, terá efeitos desastrosos a todos os níveis da
sociedade portuguesa. Muito pelo contrário, o que se deverá
exigir na situação actual é um reforço substancial da
intervenção e da responsabilização dos poderes públicos na
definição de prioridades e na afectação de meios aos diferentes
níveis de ensino, no quadro de um vasto plano de recuperação do
atraso que nos separa dos países mais desenvolvidos.
Sintomaticamente, no calor da discussão sobre
as razões que conduziram ao descalabro do processo de colocação
de professores, voltaram a ouvir-se as estafadas teorias da
«autonomia das escolas», dos «projectos educativos», do «ensinar
a aprender», da «integração com o meio», da «descentralização
administrativa», etc., como forma de lutar contra a burocracia,
o centralismo ou a incompetência ministerial e de atacar os
problemas estruturais do ensino e da formação em Portugal. Para
além de estéreis, estas discussões só contribuem, no momento
actual, para desviar as atenções daquilo que são os problemas
fundamentais.
De facto, de que o sistema educativo em
Portugal está necessitado não é de teorias, que estão mais do
que discutidas e testadas, mas de direcção política, de
organização, de responsabilização e de generalização de uma
cultura de exigência e rigor a todos os níveis, a começar pelo
próprio ministério da educação que padece, de forma concentrada,
de todos os males do sistema. Para isso é fundamental rever todo
o sistema de administração e gestão escolar, reforçando, em
particular, os poderes e as competências dos responsáveis das
escolas e agrupamentos escolares, estabelecendo critérios
exigentes para o exercício de todos os cargos de gestão
administrativa, científica e pedagógica, estabilizando os
quadros de pessoal docente e não-docente, reafectando os espaços
físicos em função de economias de escala e de eficiência de
gestão. É fundamental, também, rever o estatuto das carreiras
docentes no sentido de acabar com as promoções exclusivamente
baseadas no tempo de serviço, estimular o progresso pedagógico e
científico dos docentes, designadamente através da obtenção - à
semelhança do que ocorre no ensino superior - de graus
académicos mais qualificados (pós-graduações, mestrados,
doutoramentos, agregações, etc.), incentivar a produção de
materiais pedagógicos e científicos de qualidade, a participação
em colóquios e conferências da especialidade, promover a
internacionalização de docentes e das próprias escolas. É
fundamental, ainda, rever os métodos pedagógicos e de avaliação
dos estudantes, de forma a incentivar o estudo, o empenho no
trabalho de qualidade, a auto-exigência e o rigor.
Portugal confronta-se com problemas sérios,
de natureza estrutural, que têm limitado as possibilidades de
acelerar a recuperação do atraso económico e social que ainda
nos separa das condições de vida dos países mais desenvolvidos.
Nos últimos anos, estes constrangimentos foram ainda acentuados
por políticas económicas erradas, que privilegiaram a correcção
dos desequilíbrios financeiros internos de curto prazo em
detrimento do lançamento de bases sólidas de sustentação do
crescimento futuro. A educação, através dos contributos que dá
para a formação do capital humano é, sem dúvida, um dos
principais senão mesmo o principal alicerce do crescimento pelos
efeitos que tem ao nível da produtividade do trabalho e da
capacidade de inovar de um país. É para ela que têm de ser
dirigidas todas as atenções sob pena de estarmos a hipotecar as
bases da nossa existência futura como nação autónoma, dotada de
vontade própria e capacidade de decisão.
É também por isso que erros de tal gravidade,
como os que ocorreram este ano com a colocação de professores,
não podem voltar a acontecer.