Jornal de Negócio - 27 Set 04

A credibilidade do ensino público em Portugal

António Mendonça

O que se está a passar com o processo de colocação de professores é grave demais para ser reduzido à dimensão de um simples problema informático.

É óbvio que o drama vivido pelas centenas de milhares de alunos, famílias e docentes que aguardam a clarificação de quando e em que condições vai finalmente abrir o ano lectivo tem como causa imediata as deficiências das soluções informáticas adoptadas para a gestão do processo de colocação de professores. Mas por detrás desta manifestação de incompetência técnica e administrativa, evidenciada por anteriores e actuais responsáveis do Ministério da Educação, está a incúria acumulada e a negligência com que as questões fundamentais do ensino público têm sido tratadas em Portugal.

As responsabilidades maiores têm de ser atribuídas, em primeiro lugar, à anterior equipa ministerial que se lançou num processo de mudança radical de processos administrativos e informáticos sem respeitar as regras mínimas de segurança ou sequer de bom senso que as práticas mais elementares da gestão aconselham. Mas a actual equipa não pode ser isentada de responsabilidades na medida em que devia ter tido o cuidado de se inteirar em profundidade da dimensão dos problemas - que já se estavam a manifestar - e tomar, em conformidade, as medidas de prevenção e contenção das consequências mais gravosas que acabaram por explodir. Terminar o processo à mão, depois das sucessivas e naives demonstrações de confiança na boa conclusão do processo informático, é uma saída notável que se arrisca a ocupar um lugar de destaque no anedotário político internacional: os portugueses voltam à tecnologia do lápis na orelha para fazer numa semana aquilo que não conseguem fazer em seis meses com recurso a modernos processos informáticos.

O falhanço do processo informático de colocação de professores acontece, também, numa semana em que foram divulgados pela OCDE dados relativos ao desempenho dos sistemas educativos, a nível internacional. E, também aqui, a leitura que decorre da comparação do sistema educativo português com os dos demais países considerados na amostra, só pode levar à conclusão de que a nossa situação, não obstante todos os investimentos efectuados - e que não andam longe da média dos países que integram a organização - é, simplesmente, desastrosa. Na comparação dos níveis de formação da população com idade compreendida entre os 25 e os 54 anos, Portugal só tem atrás de si o México, perdendo em toda a linha para países como a Grécia, Irlanda, a Polónia, a República Checa,  a Eslováquia ou a Hungria. Mas, mais grave do que isso, praticamente não se registou evolução entre 1991 e 2002,  período que é objecto de análise no relatório. Portugal continua a dispor de uma população cujo nível de formação é, em larga maioria, inferior ao 2º ciclo do ensino secundário (cerca de 80%), ficando-se nos 11% no que respeita à formação de 2º ciclo e pós-secundário não superior, e 9 % no que respeita à formação de nível superior. Para se ter uma ideia da situação em que nos encontramos basta comparar com as médias dos idênticos níveis de formações dos países da OCDE: 33%, 44% e 22%, respectivamente.

Tendo presente esta realidade do sistema educativo nacional, os problemas relacionados com a colocação de professores adquirem  uma outra dimensão que remete para o plano das opções fundamentais e da condução estratégica da política educativa em Portugal, que, negligentemente, quando não deliberadamente, tem sacrificado a credibilidade do sistema de ensino público em benefício da consolidação e expansão do sistema de ensino privado. Depois deste episódio quais os pais, com um mínimo de bom senso e condições económicas, que não pensarão duas vezes antes de colocar os seus filhos numa escola pública, por melhores que sejam as suas referências?

A desresponsabilização do Estado relativamente à organização e gestão eficiente de um sistema educativo de base pública e universal é uma opção errada que, a ser concretizada, terá efeitos desastrosos a todos os níveis da sociedade portuguesa. Muito pelo contrário, o que se deverá exigir na situação actual é um reforço substancial da intervenção e da responsabilização dos poderes públicos na definição de prioridades e na afectação de meios aos diferentes níveis de ensino, no quadro de um vasto plano de recuperação do atraso que nos separa dos países mais desenvolvidos. 

Sintomaticamente, no calor da discussão sobre as razões que conduziram ao descalabro do processo de colocação de professores, voltaram a ouvir-se as estafadas teorias da «autonomia das escolas», dos «projectos educativos», do «ensinar a aprender», da «integração com o meio», da «descentralização administrativa», etc., como forma de lutar contra a burocracia, o centralismo ou a incompetência ministerial e de atacar os problemas estruturais do ensino e da formação em Portugal. Para além de estéreis, estas discussões só contribuem, no momento actual, para desviar as atenções daquilo que são os problemas fundamentais.

De facto, de que o sistema educativo em Portugal está necessitado não é de teorias, que estão mais do que discutidas e testadas, mas de direcção política, de organização, de responsabilização e de generalização de uma cultura de exigência e rigor a todos os níveis, a começar pelo próprio ministério da educação que padece, de forma concentrada, de todos os males do sistema. Para isso é fundamental rever todo o sistema de administração e gestão escolar, reforçando, em particular, os poderes e as competências dos responsáveis das escolas e agrupamentos escolares, estabelecendo critérios exigentes para o exercício de todos os cargos de gestão administrativa, científica e pedagógica, estabilizando os quadros de pessoal docente e não-docente, reafectando os espaços físicos em função de economias de escala e de eficiência de gestão. É fundamental, também, rever o estatuto das carreiras docentes no sentido de acabar com as promoções exclusivamente baseadas no tempo de serviço, estimular o progresso pedagógico e científico dos docentes, designadamente através da obtenção - à semelhança do que ocorre no ensino superior - de graus académicos mais qualificados (pós-graduações, mestrados, doutoramentos, agregações, etc.), incentivar a produção de materiais pedagógicos e científicos de qualidade, a participação em colóquios e conferências da especialidade, promover a internacionalização de docentes e das próprias escolas. É fundamental, ainda, rever os métodos pedagógicos e de avaliação dos estudantes, de forma a incentivar o estudo, o empenho no trabalho de qualidade, a auto-exigência e o rigor.

Portugal confronta-se com problemas sérios, de natureza estrutural, que têm limitado as possibilidades de acelerar a recuperação do atraso económico e social que ainda nos separa das condições de vida dos países mais desenvolvidos. Nos últimos anos, estes constrangimentos foram ainda acentuados por políticas económicas erradas, que privilegiaram a correcção dos desequilíbrios financeiros internos de curto prazo em detrimento do lançamento de bases sólidas de sustentação do crescimento futuro. A educação, através dos contributos que dá para a formação do capital humano é, sem dúvida, um dos principais senão mesmo o principal alicerce do crescimento pelos efeitos que tem ao nível da produtividade do trabalho e da capacidade de inovar de um país. É para ela que têm de ser dirigidas todas as atenções sob pena de estarmos a hipotecar as bases da nossa existência futura como nação autónoma, dotada de vontade própria e capacidade de decisão. 

É também por isso que erros de tal gravidade, como os que ocorreram este ano com a colocação de professores, não podem voltar a acontecer.

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