Famílias numerosas

O autor deste artigo é o oitavo filho duma família de nove irmãos. Habituou-se desde o berço a ver uma casa cheia de vida à sua frente. Não faltavam as pessoas muito diversas, ainda que pudesse não haver todos os recursos materiais com que via dotados outros lares, de premeditada escassez de prole, onde a atenção dos pais sobre os problemas dos seus poucos descendentes lhe parecia exagerada e doentia.

Em minha casa, nunca me passou pela cabeça que um queijo ou um bolo que aparecesse à mesa se destinava só para mim. Se o pensasse, havia logo protestos imediatos, chamando-me a atenção para o egoísmo do meu acto, além da reprimenda materna ou paterna, que me recordaria taxativamente que o que havia tinha de chegar para todos. Mas se esta realidade constitui o aspecto negativo da questão, o lado positivo levava-me a encarar a partilha como uma coisa natural; o queijo era para todos e não havia mais discussão.

Na família, aprendia-se a pensar nos outros e a respeitá-los duma forma tão simples e tão humana, que depois se tornava difícil entender questiúnculas próprias da vida escolar; o direito de posse total sobre uma bugiganga, a maneira como alguns se negavam a repartir uma "buchazita" com os outros, enfim, a dificuldade de emprestar um livro que se esgotara num determinado momento do ano lectivo.

Já quando eu nasci, ter nove filhos era considerado uma soberana estopada por muito boa gente. Sobretudo, um disparate evitável. Lembro-me de alguém meu conhecido, pai dum único filho, que comentava com ironia maliciosa: "O difícil não é ter nove filhos, mas ter só um".

Hoje uma família numerosa é olhada com um misto de espanto e de incredulidade, quando os pais são pessoas normais e civilizadas. A chamada "cultura da morte", que só considera lógica a existência de quem pode ter "qualidade de vida", assusta-se com a fertilidade e procura semear a ideia de que só se geram muitos filhos nos meios miseráveis do Terceiro Mundo, onde ainda não tocou a sorte da anti-concepção. E vê-a como um perigo iminente, uma contaminação perigosa, sempre que um casal evoluído, no exercício da sua liberdade, aceita criar os filhos que nascem da vida conjugal, mesmo quando dão lugar a uma família numerosa. Como lhes sai fora dos seus esquemas limitados e hedonistas, concluem que tudo aquilo não passa dum quiproquó, duma mania depressiva, ou então, dum preconceito religioso ultrapassado e retrógado.

Nos tempos que correm, criar uma família numerosa constitui uma acto de coragem e de afirmação de liberdade. Acto de coragem, não tanto pelos muitos cuidados e despesas que exige a criação dos filhos, mas pelo sentimento de censura ou de comiseração perplexa com que muitos contemplam os pais que assim procedem. Afirmação de liberdade, porque um casal exercita uma conduta responsável, em consonância efectiva com a natureza, quando se prontifica  contra tudo e contra todos  a educar uma prole consistente, fruto do seu amor incondicional e sem reservas.

Não consta que haja pouco carinho e bem estar verdadeiramente humano numa casa com muitos filhos. Esse tipo de questões é próprio ou das famílias monoparentais; ou das que calculam com o máximo rigor o nascimento dum herdeiro, de modo a não perturbar a promoção da carreira profissional dos cônjuges; ou ainda daquelas que, depois de experiências reiteradas de esterilidade provocada através da contracepção, marido e mulher se perturbam e desorganizam com o aparecimento tardio dum rebento super-planificado, acabando por ir cada um para seu lado e a criança com um dos dois. A experiência comprova, pelo contrário, que muitos filhos de casais mal preparados descobrem no seio acolhedor das famílias numerosas o lar pelo qual sempre ansiaram e nunca haviam encontrado.

Acaba de ser criada em Lisboa uma Associação de Famílias Numerosas. Aqui lhe deseja o melhor futuro quem, se não fosse a generosidade dos seus pais ao o aceitarem como oitavo filho, não poderia agora dizer-lhe: "Seja bem-vinda!".

Rui Rosas da Silva Doutor em Filosofia, Sacerdote Católico (Jornal “A Ordem”, de 26/08/99)

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